Chegou-me a morte figurada.
Cruzou-se comigo, na mesma estrada
Atribulada de gente,
Surgindo de relance num penhasco pungente
Que as levou a todas, sobrando eu e o nada.
Um casal cumprimentou-me, alheio à minha alma;
Ele um velhote, de bengala e calma,
Ela uma idosa de peito carregado.
Segurava-o pelo braço rogado
Como se lhe pesasse ali uma querida agalma.
Por mim vararam, naquele acenar matinal
Que não respondi de volta, feito marginal
Que não lhe coube os bons (...)
Se de todo começo, hei-de lhe dar fim.
Obra incompleta é leitura que inicia e finda,
E eu, por ser matéria física;
Sabendo-o por ninguém, também matéria física, me ocupar o mesmo assento ---
Haverei de deixar de ser, se coisa for, realmente,
Sem ter que me dar ao dissabor da vida.
Pertence-me uma certidão de nascimento,
Se mais tive, não quero saber que nasci mais vezes
Por serem mais mortes, também, que me levariam as vidas.
Cansa-me pensar na derradeira,
Na que (...)
Desperta-se-me a alma
Recolhida em trapos cobrindo-lhe a nudez.
Sonho atribulado de onde retorna
Ao se ver, agora, fora de si mesma.
Foi-lhe tecido em mãos idosas
O cobertor com que se agasalha.
Fado ingrato que se faz carga em ombros nus
Sem quaisquer escrúpulos consequenciais da vida.
Predominante crise na sua própria existência
Segrega-se em suores escorridos pela testa,
Apoderando-se de efémeras vontades
Febre aguda.
Mas como pode
Vir das costureiras, (...)
Hão de me assistir os anjos
ao deambular pelas trevas,
Vendo-me livre de um fustigo sinfónico
Abraçando causas menos penosas?
Não me fiz esperar pela chama,
Vai que me queima a fronte
E febril doo a alma numa bandeja.
Sabe-me à noite o dia,
Mesmo ao descer em ruas não batizadas pela luz.
Esplendores carnais afastam o nevoeiro
Em ofícios noturnos
Pondo-se-me a curiosidade em seus afazeres.
Esquino num choro
Onde mãe, sem peito, cede-se a uma criança;
La (...)
Brame a chama
Faúlhas ruivas em salpicos de excitação e desejo
carnal, possesso à vontade de tocar em pele
Vencido por cousa nenhuma;
Ó fogo voraz!
Untado em fogo da mente
Faço-me fogo real!
Oh lá, que se cheguem a mim faíscas, gasolinas e bebedeira ---
Incendeiem-me e vejam o ímpeto de um homem
Quando arde de verdade!
Como é grande o desejo; e eu maior que ele!
Como não me pesas montando, e cavalitas
em mim como uma criança cavalga um pónei
E (...)
Não me assobies à noite
E me perturbes o sonho à febre,
As estrelas cadentes - desejos tão próximos e fugazes - por astros de qualquer matéria ardente ---
Os cabelos loiros que se entrelaçam com os meus na mesma almofada
Pelo sol que me interrompe a privacidade, pela janela adentro!
Os cânticos poéticos das musas que me chegam à alma
Pelo chilrear estridente de coisas com asas
E as melodias delas, donzelas da inspiração, por um carro de gado que me atravessa a estrada.
Dei (...)
Finda mais uma noite de espetáculos,
Desço do palco para os aposentos.
A passo letárgico, como que movido pelo cansaço da representação
Ou do receio de deixar de ouvir os aplausos,
Retorno por diversas vezes o olhar ao cortinado
Deparando-me com uma parede opaca
Que me sorri e acena, em jeito de despedida.
Em corredor comum com vista para as bancadas,
Passeio os olhos nas pessoas que se levantam e saem
Seguradas por mãos de cavalheiros, as donzelas,
E segurando as (...)
Que febre que me arde pelas têmporas
Qual pirotecnia cerebral.
E estronda, e arrebenta,
E ouço risos de quem festeja
A morte das estrelas pelo artificial.
Como os vejo correr, os mais novos desalmados atrás do fogo
E como se queimam, ao aproximar as mãos à chama
E como gritam e como eu os gosto de ouvir guinchar!
Vai o velho sacudir-lhes as cinzas dos corpos
E vão eles junto das cinzas.
O que me regozijo ao vê-los curvados e negros
E vida a ir, como veio, num (...)
Oh lá! Como vão eles de narizes prostrados no ventre Olhando para coisa nenhuma que lhes brilha (n)os olhos!
E quantos não vão mortos, mesmo de olhos abertos E narizes empinados, escutando o vizinho Em confidência com a amante!
Fecha-se com um estrondo, e segue caminho Velha e ferrugenta gerigonça Transportando velhos e ferrugentos.
E eu vou dentro!
Roi-me a alma à mesquinhice. Rasgo a carne e esventro-me; Cai-me as tripas, esvaio sangue nas gentes!
Ainda (...)
Iluminada pelo brilho da lua
A noite vê-se prolongada por mais umas horas.
Em cima de uma mesa de cabeceira,
Onde o luar penetrante rompe entre o tecido das cortinas
E lhe faz presença,
Está um relógio prateado revelando o tempo.
Quatro e cinquenta
Marcou ao ser levado ao bolso.
Entre a jaqueta operária
E um coração agitado,
Deixa-se transportar aconchegada a prata.
Nuns sapatos gastos mas de sola reforçada
Apressa-se também quem o tempo carrega na algibeira.
Ah (...)